Dossier

Notas de uma etnografia entre educadoras/es musicais em formação: da promoção à precarização de uma política pública

Notes on an ethnography among training musical educators: from the promotion to the precarization of a public policy

Vânia Müller
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

Notas de uma etnografia entre educadoras/es musicais em formação: da promoção à precarização de uma política pública

Espacios en Blanco. Revista de Educación, vol. 2, núm. 32, 2022

Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires

Recepción: 14 Febrero 2022

Aprobación: 22 Marzo 2022

Resumo: Este texto é uma descrição reflexiva de momentos e aspectos da inserção de licenciandas/os em música na ambiência sonoro-musical de uma comunidade escolar, onde atuávamos com a política pública federal PIBID, de 2014 a 2019. Procuro evidenciar o princípio ético-político que acompanhava os planejamentos e práticas musicais: a busca de alteridade sistêmico-cultural e pedagógica no tempo-espaço das oficinas de instrumentos musicais, de canto e na Orquestra Experimental. A pesquisa que gerou as informações aqui trazidas aponta os êxitos dos objetivos do programa, e também as suas fragilidades, na interface de alguns pressupostos do neoliberalismo. A narrativa é constituída de trechos de relatórios e diários de campo que também trazem a autoria das e dos licenciandas/os.

Abstract: This text is a reflective description of moments and aspects of the insertion of undergraduates in music in the sound-musical environment of a school community, where we worked with the federal public policy PIBID, from 2014 to 2019. An ethical-political principle accompanied musical planning and practices: the search for systemic-cultural and pedagogical alterity in the time-space of musical instrument workshops, singing group and the Experimental Orchestra. The research that generated the information presented here points out the successes of the program's objectives, as well as its weaknesses, at the interface of some assumptions of neoliberalism. The narrative consists of excerpts from reports and field diaries that also bring the authorship of the licenciandas.

Keywords: music education, teacher training and neoliberalism, public policy, basic education.

Palabras clave: educação musical, formação docente e neoliberalismo, política pública, educação básica

I. Contextualizando a ambiência sonoro-musical

Este artigo procura chamar a atenção para o contato entre universidade e Escola Básica1 e alguns dos efeitos da aproximação destas duas instâncias educacionais, sobre estudantes ainda em formação para a docência em Música, uma formação pedagógico-musical. Na universidade, se tratava de estudantes do curso de Licenciatura2 em Música da UDESC/Universidade do Estado de Santa Catarina; na Escola Básica, se tratava de uma unidade escolar da rede pública estadual, também de Santa Catarina, Brasil. É uma escola com cerca de 1200 matrículas, com crianças do primeiro ano de alfabetização aos adolescentes do final do Ensino Médio. Ambas as instituições se localizam em Florianópolis.

As reflexões aqui trazidas partem da ambiência musical que resultou da aproximação destas duas instituições públicas. Resultado sonoro musical oportunizado pela política pública federal PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência)3, dirigida a cursos de Licenciatura. Me permito expor aqui, sucintamente seus seis objetivos centrais, pois que tiveram ampla adesão e concordância com a proposta pedagógica, tanto por parte da Educação Básica quanto pelas universidades brasileiras:

1)Incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica; 2) contribuir para a valorização do magistério; 3) elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica; 4) inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem; 5) incentivar escolas públicas de educação básica, mobilizando seus professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; 6) contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura (Acervo do pmúsica)4.

Este programa se destinava aos cursos de Licenciatura irrestritamente de todas as áreas do conhecimento, com bolsas em dinheiro mensal aos licenciandos, a professoras/es supervisoras/es do programa nas escolas básicas, às coordenações de área e à coordenação institucional nas universidades. Assim, eram chamados pibid matemática, pibid história, pibid biologia, etc.

É preciso ressaltar que havia uma grande confiança nas intenções do governo federal daquele período e uma forte aposta no êxito dos objetivos do programa, pois vinha de um Ministério da Educação e Cultura que estava inspirando e incentivando com recursos financeiros altos e propostas concretas, uma pedagogia progressista que considerava a formação integral do ser humano, cuja amplitude visava uma sociedade democrática, com consciência crítica e exercício de sua cidadania plena.

Igualmente convém salientar, que o contraste com o período anterior era bastante impactante: vínhamos de décadas de desvalorização crescente e assombrosa da profissão docente, resultando que os vestibulares (exame de ingresso na universidade) em licenciaturas estavam com vagas sobrando na grande maioria das universidades federais e estaduais. Vínhamos de salários humilhantes, de investimentos nulos e sem efetivação na Educação, e de um descrédito generalizado em ambiências de Educação dominando o senso comum, inclusive de docentes que atuam em Licenciaturas. A área da Educação Musical ainda convivia com a histórica ausência da Música nos currículos da grande maioria das escolas públicas e particulares brasileiras.

Conquanto, na direção oposta, e também com o valor da bolsa PIBID sendo bem maior do que as bolsas de Extensão e Pesquisa na universidade, houve uma mobilização nacional do magistério em torno da política pública PIBID e isto era percebido por nossos/as futuros/as professores/as de música. Imbuídos de uma esperança freireana de transformar o mundo, carregávamos a alegria que acompanha a certeza da utopia realizável (Freire, 2015, 2019;McLaren, 1997). Com ela em mente, o pibid música da UDESC (ao que passo a referir por pmúsica) implementou, em 2014, atividades musicais na nossa escola parceira neste programa, a qual chamávamos de “escola-núcleo” (ao que passo a referir por e-n).

A exigência da CAPES de que a supervisão na e-n fosse na área de atuação da Licenciatura, no nosso caso era feita por uma professora da área de Artes Visuais, pois não havia nenhum/a docente da área Música em nossa e-n. Sabíamos que isto poderia trazer uma certa precariedade na supervisão de nossas/os futuras/os educadoras/es musicais, inicialmente; no entanto, também entendíamos que nossa presença e participação na vida da escola e a ambiência musical que concretizaríamos ali pudesse apontar à direção e a autoridades da Secretaria Estadual de Educação, a importância da educação musical vir a constituir a grade curricular da escola. Em uma de nossas primeiras reuniões de planejamento, antes ainda de iniciarmos a atuação na e-n, dois bolsistas comentavam:

A e-n vai ver! A gente vai mostrar com o nosso som! (disse sem levantar da cadeira fazendo gestos bastante amplos de quem estava a reger uma grande orquestra, e imitou também os aplausos imaginários que vêm depois). Tu vai ver professora (se dirigindo a mim) é só uma questão de tempo... logo, logo nosso trabalho vai encantar! A senhora sabe, né professora, as crianças é moleza a gente agarrá, e elas vão impressionar fazendo música. Ao que o outro complementou: é, eu sei, no meu bairro foi bem assim. Rola muita mãe e pai babando e até chorando por ver as crianças tocando, a senhora sabia? Eu disse: bora ver se, fazendo música, a gente conquista as devidas autoridades a trazer não apenas um, mas quem sabe, dois professores/as de música para a nossa e-n (Diário de campo, 19.06.14).

Muito embora não houvesse música no currículo da nossa e-n, aos poucos a ambiência musical em torno da equipe do música foi crescendo e transformando a paisagem sonora de seus tempos-espaços: inicialmente, através de oficinas extraclasse de instrumentos musicais e canto, que se realizavam após o horário das aulas curriculares da manhã e da tarde, às 17h30, para que todas as pessoas interessadas pudessem participar; em seguida, já no segundo semestre do mesmo ano, 2014, conseguimos inserir música no currículo do 4º e do 5º ano do Ensino Fundamental. No ano seguinte, inserimos a música também no 3º e 6º anos, com um bolsista música em cada turma, sempre tornandoas também campo de estágio.

Propositalmente, procuramos atrair, juntamente com as crianças e adolescentes matriculados na en, as suas famílias, professoras/es de todas as áreas, técnicas/os e administradoras/es, guardas-noturnos e limpadoras – a comunidade escolar como um todo. Trago como ilustração o organograma de 2017, ano em que o música estava com as atividades assim estruturadas na en:

Organograma do PIBID Música
Figura N° 1
Organograma do PIBID Música

Organograma de nossa implementação da música em salas de aula curriculares da e-n (nos círculos), oficinas de instrumentos musicais e canto (nos retângulos) e, nas estrelas ao centro, a Orquestra Experimental (OE) para onde procurávamos convergir todas estas práticas musicais. Bolsistas pmúsica e estagiários/as tocavam com suas turmas na OE; esta, outro locus de estágio, representado pela estrela menor.

Acervo de documentos do pmúsica UDESC.

Nesse momento a equipe contava com 10 bolsistas pmúsica, 14 estagiários das disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado do nosso curso de Licenciatura em Música atuando em duplas em sala de aula curricular, em oficinas de instrumento e canto e na OE; 4 professoras da Licenciatura em Música orientadoras de estágio, 1 professora da própria escola na supervisão do pmúsica na en. Nossas reuniões de planejamento e avaliação podiam contar com professoras/es orientadoras de estágio curricular supervisionado, coordenadora pedagógica ou diretor da escola, além dos bolsistas do pmúsica e estagiários/as, a depender da pauta.

Reunião de planejamento do pmúsica, com a presença de uma criança da oficina de piano que pediu para participar. Em 11.05.2017.
Imagem Nº 1
Reunião de planejamento do pmúsica, com a presença de uma criança da oficina de piano que pediu para participar. Em 11.05.2017.
Relatório anual CAPES/UDESC.

Criamos uma página na internet, como meio de valorização dos nossos futuros educadoras/es musicais e de visibilidade da comunidade escolar como um todo. Mas para alguns estudantes, também era importante dar visibilidade em nossa página da internet, ao PIBID enquanto uma política pública do governo federal da época, tal era o entusiasmo e sentimento de gratidão que emanava da equipe.

No segundo ano de atuação do pmúsica na e-n, conseguimos levar um piano da UDESC, em empréstimo, para a sala de apresentações públicas e ensaios da OE e, no ano de 2018, mais dois pianos. De modo que o material que gerava a ambiência sonora nos tempos-espaços da e-n vinha tanto de pianos, violinos e percussões afro-brasileiras, como de objetos sonoros alternativos – por exemplo, sementes, conduítes de fios elétricos, folhas secas, folhas verdes de palmeiras, apitos de sons de aves, objetos com sons de grilos e sapos, trovões, metais diversos como tampas de panela de tamanhos distintos, bacias com água e outros. A sonoridade também era constituída por Xilofones comprados com verba do programa, outros doados ou emprestados à escola por simpatizantes do programa.

Exemplo de objeto sonoro alternativo sendo tocado por crianças em apresentação da OE. Aqui, sementes de castanhas da região amazônica. Em 9.10.17.
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Exemplo de objeto sonoro alternativo sendo tocado por crianças em apresentação da OE. Aqui, sementes de castanhas da região amazônica. Em 9.10.17.
Relatório anual do pmúsica/CAPES/UDESC

Oficina de Violino e sua respectiva licencianda Música, à direita, bolsista pmúsica, 9.11.2016.
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Oficina de Violino e sua respectiva licencianda Música, à direita, bolsista pmúsica, 9.11.2016.
Relatório anual do pmúsica/CAPES/UDESC.

II. A utopia que nos movia

Coadunadas com os objetivos do programa de qualificação na formação docente, também nos acompanhava um sentimento de orgulho de, ao mesmo tempo, atingir a escola e a universidade na qualificação do curso de Licenciatura em Música. Sempre com a meta de produzir pensamento crítico e alteridade à hegemonia cultural sistêmica, os principais objetivos político-pedagógico-musicais do pmúsica eram:

fazer música – e levar crianças e adultos a fazerem música – como algo que leva em si uma satisfação inerente (Small, 1989, 1999);

desconstruir as dicotomias e fragmentações entre as disciplinas tidas como “de teoria” e “de prática” e disciplinas tidas como “de música” e “de educação”;

instigar o desejo de conhecer os sentidos subjacentes a quaisquer práticas musicais e a compreender a enorme importância do educador musical relativizar juízos de valor sobre a música de quaisquer grupos sociais, em qualquer tempo e contexto histórico;

promover o discernimento de especificidades do contexto escolar, tanto quanto aprofundar o conhecimento sobre os mecanismos que na escola são produtos e reprodutores da cultura sócio sistêmica (Bourdieu, 2008; 2009) (Acervo do pmúsica).

Um modo concreto de levar as e os licenciandos ao discernimento da escola como produto e reprodutora da cultura, na hierarquização de saberes, na formalidade dos tempos-espaços e da arquitetura da escola, ainda bastante apartada da natureza foi promover uma sala de aula ao ar livre, todo mês, em dia de lua cheia, com fogueira no pátio da escola. Foi chamada de “sala 12”, onde ocorria a “jam da lua cheia”, após a oficina de instrumento escalada para o dia.

Oficina de Violão, já no local, antes da jam da lua cheia, de 1º.10.15.
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Oficina de Violão, já no local, antes da jam da lua cheia, de 1º.10.15.
Relatório anual do pmúsica/CAPES/UDESC.

A jam da lua cheia, com pipoca feita na fogueira. A panela e sua tampa eram instrumentos da OE. 1º.10.2015.
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A jam da lua cheia, com pipoca feita na fogueira. A panela e sua tampa eram instrumentos da OE. 1º.10.2015.
Relatório anual do pmúsica/CAPES/UDESC.

O pmúsica tinha por princípio proporcionar tempos-espaços de construção e sistematização de conhecimento músico pedagógico, para todo o corpo discente do Curso de Licenciatura em Música (não apenas para bolsistas do programa e estagiários). Promovíamos apresentações das crianças e adolescentes das Oficinas e da OE da e-n objetivando que estudantes das diversas fases do curso tomassem contato com uma performance musical que subverte hierarquias historicamente estabelecidas a partir do colonialismo no campo da Música (Queiroz,2020) e (Batista, 2018). Fazíamos questão de explicitar isto – o que significava criticar o próprio repertório através do qual os cursos de Música da UDESC estavam ensinando música a eles e elas, que é também a mesma música exigida nas provas práticas específicas do vestibular para acesso aos cursos de Música na universidade brasileira. A ambiência formativa do pmúsica alcançou diversas instâncias do corpus da Licenciatura da UDESC na problematização da natureza e qualidade de nossa relação com a música – fortemente marcada pelo utilitarismo sistémico – a cada performance musical das oficinas com as crianças e adolescentes e da OE, nas dependências da e-n ou na universidade, ou outros locais na cidade.

Recital didático do Quarteto de Cordas da UDESC, na e-n, 30.6.2016.
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Recital didático do Quarteto de Cordas da UDESC, na e-n, 30.6.2016.
Relatório anual do pmúsica/CAPES/UDESC.

Esta ambiência musical é a estrutura a partir da qual era forjada aquela paisagem sonora (Schafer, 2009, 2011) na e-n, a qual passou a atrair estudos de graduação e pós-graduação5, enquanto cenário de investigação na área de Educação Musical. Uma delas foi a pesquisa que realizei, com observações de 2016 a 2018, intitulada “Artisticidade, cultura e educação musical: uma etnografia na escola-núcleo do PIBID Música UDESC/CAPES”. É desta investigação que estou extraindo algumas reflexões e apontamentos – por isto em linguagem descritiva-etnográfica – procurando apontar os meandros da ambiência formativa de licenciandas/os em música no referido programa.

Por ter como prioridade a produção de pensamento crítico, neste texto estou me referindo à incidência de alguns elementos da cultura sócio sistêmica na formação de futuras/os educadoras/es musicais, e o quê observamos de pressupostos do neoliberalismo no trânsito das/os futuras/os professoras/es de música entre a escola básica e a universidade.

Hoje, na reunião com o pmúsica, apontei os prejuízos da homogeneização sistêmica mercadológica, associando a homogeneização que a escola reproduz, desde a exigência de que crianças e adolescentes tenham a mesma idade em cada turma. Quando falei “vocês são, ou melhor, nós somos um grupo rico, também por sermos pessoas de idades diferentes e de distintas fases do curso, convivendo, um deles comentou: “nossa, é verdade!... sempre tem a galera de formandos interagindo com os calouros6. Eu não lembro, profe, de pertencer a um coletivo assim... com tantas diferenças... só que elas são boas. Foi lindo ver a Verinha, de seis anos, ensinando o Marcos, que tem 16, a segurar o arco do violino”. Ele sorriu e foi fazer anotações em seu caderno (Diário de campo, 22.03.15).

A partir do instrumento musical ao qual cada um/a se dedicava e de outras particularidades como perfil de interesses, cada um/a assumia a função da categoria que formalmente as/os inseriam na e-n: a) bolsista do pmúsica – encarregada/o das atividades pedagógico-musicais nas oficinas de instrumento e voz extra-curricular, ou em alguma turma com música curricular do 1º. ao 6º. ano fundamental e, também, tocar na OE; b) estagiário/a – inserido para atuar nas oficinas e turmas com bolsistas pmúsica; c) bolsista de iniciação científica – atuando nessa pesquisa etnográfica que ora menciono, cujas observações, registros e reflexões também tiveram sua participação.

O enfoque interpretativo que dou às impressões e depoimentos das futuras/os professoras/es de música – estes, registrados nos relatórios anuais de cada uma das três categorias e também de minhas observações, registros em diários de campo, em áudio e vídeo e entrevistas semi-estruturadas – decorre de como nossos/as licenciandos/as se relacionavam com as temáticas explicitadas nos objetivos da pesquisa mencionada. Os exponho aqui, pois se faziam presentes, diariamente, nas conversas enquanto íamos da universidade até a e-n, nos planejamentos de aulas, nas suas constatações de alguma dificuldade músico pedagógica, também porque me viam etnografando:

III. Da Jam da lua cheia a devastações do golpe: cenários para construção de pensamento crítico

O êxito do pmúsica, e da política pública federal PIBID de modo geral, estava sendo alcançado com extremo esforço, pela precarização das relações acadêmicas e escolares; centralmente, a escassez do tempo cada vez mais tomado por burocracias: a universidade administrada pela “ideologia da competência” neoliberal (Chauí, 2016) tinha na escola sua réplica. A criação de um caos financeiro, em preparação ao golpe de Estado de 2016 foi definitivo no rumo do pmúsica. As dificuldades de subsistência dos/as licenciandos/as os levava a faltar oficinas e aulas, quando surgia um modo de ganhar algum dinheiro:

Na nossa ida hoje, da universidade para a e-n, quando estávamos espremidos em 6 pessoas no meu carro, mais três atabaques, uma zabumba, cinco pandeiros, cinco triângulos, respectivas baquetas (de madeira, metal, feltro e plástico), 7 estantes, um licenciando perguntou se o valor da bolsa havia entrado na conta bancária. Ficou um silêncio apreensivo no ar. Imediatamente lembrei-me do recado que me deu um dos bolsistas, ainda na universidade, que sua dupla de atuação da oficina não estaria presente hoje, porque “rolou uma guigue7 irrecusável” (Diário de campo, 13.04.16).

As professoras e professores da nossa e-n estavam bastante assoberbados, alguns trabalhando em até cinco (5) escolas distintas, para poder manter sua família. Nossa supervisora da e-n, agora da área de LIBRAS (sinais para surdos/mudos) trabalhava em três (3) escolas, inclusive à noite. Os licenciandos percebiam, o que resultou nesse trecho de relatório, ao final daquele ano:

A maior dificuldade encontrada foi a comunicação entre Direção/Coordenação da e-n e o pmúsica como um todo. No decorrer do ano houve muita falta de comunicação e também de cuidado com o pmúsica por parte da direção da escola. Minha oficina ficou sem sala 3 vezes; é constrangedor com as crianças. Fizemos aula no pátio e, num dia de chuva, no pilotis, onde a acústica é ensurdecedora. Muitas vezes as informações não eram repassadas e os e-mails não lidos, o que gerou choques de horários, também da oficina de piano e de violão. Várias faltas de bilhetes e avisos para os familiares sobre apresentações na escola e também da divulgação das oficinas de instrumentos do pmúsica (Relatório anual de bolsista pmúsica, dezembro de 2016).

O acirramento da precarização da vida, a partir da consumação do golpe de 2016 na presidenta Dilma Rousseff ficou evidente entre as e os licenciandos. Já convivíamos com atraso do pagamento das bolsas e fortes indícios de encerramento desta e de outras políticas públicas. Falar sobre o objetivo da pesquisa que presenciavam passou a ser corriqueiro, observando as dificuldades “associadas aos pressupostos do neoliberalismo” e como incidem na produção de subjetividades.

Segunda-feira, 12h30. Nestes horários de almoço tenho tentado me esconder aqui na sala de pesquisa, fora do prédio da Música, pra tentar registrar algo no diário de campo. Como contar, descrever o que parece inominável? É uma certa aflição. Mas acho que é, além de necessário, legítimo registrar. (sempre esta dúvida... aflição se registra, considerando que é do universo pedagógico?) Por se tratar de uma política pública tão... contrastante com a ambiência que vemos no nosso entorno – não se vê alguém elogiando pedagogicamente ou enaltecendo a importância do pibid, em qualquer área, muito menos enquanto uma iniciativa federal ou como política pública. Estamos em golpe cívico militar e a universidade está muda. Convidei colegas pra conversar com os estudantes do departamento de música, mas eles ainda estão sob o medo do golpe de 1964!...E eu compreendo; tiveram familiares perseguidos. Mas minha aflição maior é a fragmentação de tudo, das disciplinas, do conhecimento, dos setores na universidade igualzinho na e-n! Por que o pibid geografia, que tem a mesma e-n de atuação, não consegue encontrar com a gente e NUNCA nos encontramos lá? Por que não vingou a jam da lua cheia? Por que seguimos sem professor/a de música, com toda a ambiência sonoro-musical na e-n, dentro e fora de sala de aula, com concertos da OE pela cidade, mesmo tendo reivindicado na direção da e-n e na Secretaria Estadual de Educação, bem mais de uma vez? (Diário de Campo, 9.08.17).

No relatório anual de 2018 à universidade e à nosso agência fomentadora, CAPES, inseri: “não há viabilidade desta coordenadora seguir de modo decente com os objetivos deste programa, em se tratando da formação das/os licenciandos, por 3 motivos centrais: 1. sobrecarga e excesso de atividades burocráticas, que extrapolam a carga horária semanal, que ultrapassa, há anos, os 5 dias de trabalho semanal oficial; 2. fragmentação absoluta das disciplinas e vínculos precários na universidade, resultando em atuação absolutamente isolada e solitária no planejamento e realização das atividades; 3. ausência de supervisor/a na escola, na área da educação musical, ainda, como relatado também há anos.

Um aspecto positivo foi que nossas/os licenciandas/os foram se familiarizando e ampliando a compreensão sobre os pressupostos do neoliberalismo a que me referia na pesquisa. A fragmentação8, a homogeneização, o individualismo e o utilitarismo (Guattari, 1993; Gentili, 1995; Dumont, 2000, 1997; Pellanda, 2001) passaram a fazer parte de seu vocabulário. Da apatia e omissão da universidade no desmonte das políticas públicas e as privatizações que se seguiram, foram vendo a) modos de desenvolver entre crianças a noção de cidadania; b) que podiam inserir em seus repertórios musicais, indicativos e abordar a desigualdade social; c) que as relações desiguais de gênero que viam na e-n, na universidade e no próprio golpe contra a presidenta do Brasil tinham suas raízes históricas e culturais na moral e na ética modernista/capitalista vinda com o colonizador. Interessante que o coral, a oficina de violão e de percussão passaram a atrelar, parte de seus repertórios a noções de racialização, de gênero e de classe.

Este texto procura apontar, a partir desta descrição sucinta de algumas atividades realizadas nesta política pública potencialmente exitosa em seu ideal docente/educacional, a responsabilidade que, nela, a nossa universidade não toma para si quanto a formação docente qualificada. Como coloca a filósofa Marilena Chauí, a ideologia da competência na universidade está a:

Criar incompetentes sociais e políticos, realizar com a cultura o que a empresa realiza com o trabalho, isto é, parcelar, fragmentar, limitar o conhecimento e impedir o pensamento, de modo a bloquear toda tentativa concreta de decisão, controle e participação, tanto no plano da produção material quanto no da produção intelectual. Se a universidade brasileira está em crise, é simplesmente porque a reforma do ensino inverteu seu sentido e finalidade – em lugar de criar elites dirigentes, está destinada a adestrar mão de obra dócil para um mercado sempre incerto (Chauí, 2016, p. 62).

E nossas/os futuras/os professoras/es de música tinham na e-n e na universidade, a reprodução e, portanto, a reafirmação desta ideologia vigente, anterior ao PIBID. Como o caráter polimórfico do poder (Elias, 1982) – e em geral, invisível – em se fazer hegemônico. Voltamos ao assoberbamento exponencial de burocracia e tecnocracias ‘competentes’ e competitivas, ágeis (na priorização do cumprimento de prazos) e sem tempo a perder. O cenário foi se desertificando: com alguns se retirando do pmúsica pela falta de bolsa, encerrando-se as respectivas oficinas, por consequência, perdendo-se aquele campo de estágio em música. Outros, como mostra a fala do licenciando abaixo, se retiraram mesmo com bolsa ainda, dizendo:

Professora, eu fiz a conta... com algumas guiges eu tiro mais dinheiro num mês, do que recebe a nossa supervisora na e-n. É muito triste, mas eu não quero ficar existindo assim, sem saber o que pode acontecer. Mas profe, mais que tudo, é muito, mas muita tarefa a registrar, guardar, enviar e muito prazo pra se submeter...profe, a vida virou isso! Nos últimos 3 meses, 4 profes meus ficaram com algum troço no corpo, profe! Profe, esse trabalho sequela... (Diário de campo, 22.11.17).

Voltamos também àquele descrédito já bem conhecido no Brasil, com a profissão docente e à escola de modo geral, como um lugar de muitas tarefas mais ou menos sem sentido. O depoimento acima do nosso futuro professor endossa o que nos traz Ortega Valencia (2012), em seu estudo realizado na Colômbia, ao tratar de escolas populares da perspectiva da pedagogia crítica. A autora traz as palavras de Cullen (2004), quando aborda razões que legitimam a falta de interesse da juventude na escola, ao que se aplica ao caso brasileiro, das quais destaco a segunda: “porque la educación aparece hoy como acentuadamente funcional a las necesidades de un mercado de competitividad salvaje y excluyente, y es casi impotente para resistir las formas de vida que impone una sociedad sin trabajo y sin solidaridad” (Cullen, 2004, apud Ortega Valencia, 2012, p. 115).

Também quero endossar Ortega Valencia (2012), no que defende como demandas da escola de setores populares e suas problemáticas. Sem minimizar a importância de nenhuma, destaco aquela que sugiro ser tomada como demanda de toda a rede de ensino: “la incorporación de la democracia, la convivencia y la ciudadanía en el currículo [...] exigiendo nuevas actuaciones de los maestros para apropiar estas demandas y tramitarlas desde procesos pedagógicos” (p. 114).

Uma das lições que tiro da experiência na coordenação do pmúsica, a considerar também o recrudescimento, em nosso tempo presente, do fascismo atrelado às desigualdades geradas pelo capital mundial integrado é que isto – democracia e cidadania como componentes dos currículos – deve ser pensado e desenvolvido em termos de nossas Américas afro-latinas.

No que diz respeito à educação musical sugiro que precisamos de uma formação docente para além de nosso objetivo primeiro no pmúsica. O repito: levar crianças e adultos a fazerem música como algo que leva em si uma satisfação inerente (Small, 1989, 1999), (independente de saberes musicais e utilitarismos). É preciso formar docentes que também venham a compreender que todo ser humano precisa ter direito a tempo-espaço para conhecer e exercer sua musicalidade e a artisticidade de que é dotado.

Referências

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Notas

1 No Brasil, a Escola Básica compreende desde a Educação Infantil (0 a 6 anos) até o final do Ensino Médio. O passo seguinte é a universidade.
2 “Licenciatura” no Brasil equivale a “Profesorado” na Argentina.
3 O PIBID foi proposto pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), vinculada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), a partir de 2007 com o objetivo de incentivar e valorizar a docência, e aprimorar o processo de formação de professoras/es para a educação básica. Essa política pública oportunizava aos futuros docentes os primeiros contatos com o campo de atuação, e qualificar, ao mesmo tempo, os cursos de Licenciatura.
4 Estes objetivos do PIBID encontram-se registrados apenas no acervo documental do pmúsica na UDESC, uma vez que o programa foi extinto pelo governo federal de 2019, não estando mais disponível em seus termos originais na página da CAPES na internet.
5 Schmidt, B. W. Práxis em Educação Musical humanista: uma experiência no 5ª Ano do Ensino Fundamental. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Silva, P. H. Intolerância religiosa: uma experiência músico-pedagógica na educação básica com a cultura africana e afro-brasileira. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Música) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. Ströher, K. O que pode a experiência da performance musical? 2019. 107p. Dissertação (Mestrado em Música) – Centro de Artes, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019.
6 No Brasil, assim são chamadas/os recém ingressadas/os na universidade.
7 Gíria que no meio musical brasileiro significa um trabalho aleatório; ser chamado para tocar, em geral inesperadamente, para substituir um/a musicista.
8 A fragmentação foi abordada de modo bastante exitoso na consciência da equipe do pmúsica, através de duas ações, sobre às quais me limito aqui a resumir: o “Projeto Carnavália” (Müller, Schmidt, & da Silva, 2015) e apresentações mensais na e-n de diversas turmas de disciplinas da Licenciatura e Bacharelado em Música e seus profesores/as, o que levou diversos outros músicos/estudantes do curso, a também interagir com a e-n.
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